Ana Nitzan por Guy Amado

Como ela própria afirma, Ana Nitzan fotografa “desde sempre”. Seu ímpeto em capturar fragmentos da realidade que a cerca, de aspectos daquilo tido como trivial na existência cotidiana, conformou um repertório imagético bastante amplo no decorrer dos anos. Uma miríade de assuntos e temas vão e vêm livremente em sua trajetória, sinalizando talvez um interesse predominante em registrar aspectos da natureza – com a qual a artista mantém um vínculo intenso, que transcende em muito a relação medianamente distanciada que o cidadão urbano pode ou se dispõe a ter.

Transparece em sua práxis uma tônica não tanto comprometida com uma tradição específica da fotografia – no sentido de abraçar um cânone ou de aspirar a virtuosismos – mas obedecendo antes a uma pulsão que valoriza a intuição e a livre experimentação. Essas características, amparadas no pleno domínio da linguagem e na recusa de maiores artifícios técnicos, colaboram para evitar o enclausuramento desta produção a uma determinada filiação estilística. O compromisso de Ana é primordialmente com a atividade fotográfica em si, o exercício de observar e apreender imagens e assim construir sua própria gramática visual e, por conseguinte, uma poética do ver.

No conjunto de trabalhos ora expostos, a artista se detém sobre três agrupamentos temáticos, apresentados em séries: paisagens – recortes celestes encampando vastidões rurais –, ruínas de casarios e registros de uma ação realizada com tecido sobre água. Esta última série emerge como um desdobramento de questões que vêm interessando de modo mais sistemático a artista, e que tangenciam o universo do feminino em suas variadas manifestações, com foco na corporalidade. O tecido ganha contornos imprecisos em seu embate com o líquido, assumindo uma fisionomia a um só tempo viva e amorfa – ou antes transmorfa –, de definição incerta. É investido de uma organicidade ambígua, ora remetendo a uma espécie de carnalidade volátil, em constante transformação, ora à de uma pele revolta – por sua vez flutuando sobre a pele aqüosa que a envolve e reinventa. Há um quê de suave melancolia nessa espécie de coreografia estranha e silenciosa, como se o tecido fosse dotado de um súbito élan vital apenas para executar um último ato sobre a superfície de um elemento ao qual é alheio.

A presença desse tecido-pele se desdobra com novos significados nas imagens do interior de um casario de fazenda em ruínas. Surge aqui e ali, esvoaçante ou repousando sobre um amontoado de resíduos, animado pela claridade irregular da iluminação natural do local, como que pontuando delicadamente uma ausência e ativando o genius loci, o espírito do lugar, da casa que já foi [a noção de casa, em par com o corpo, tem destaque no escopo de interesses mais recentes da artista]. Nesta série há uma sugestão de narrativa, da possibilidade de reconstituição de uma realidade suspensa no tempo, a partir do caráter indicial dos elementos que ali habitam. O foco parece oscilar entre esse registro de matizes mais suavemente evocativos, a serviço de uma memória afetiva, e a captura de algumas composições “já prontas” que o lugar oferece, como os arranjos formados casualmente por novelos de arame pendurados à parede, e que a artista também não se furta a captar. Devidamente enquadrados e transpostos para a planaridade da fotografia, saem por instantes do esquecimento e tornam-se quase-gravuras ou quase-desenhos, pura linha e expressividade.

E há os céus, as “paisagens quadradas”. Aqui fica patente o caráter a um só tempo despojado e elegantemente objetivo que marca a produção de Ana, com suas imagens afirmando a espessura de real que carregam, paradoxalmente potencializada pelo foco no vazio celeste. Que por sua vez dialoga com os espaços em ruínas já comentados; mas se lá era o vazio que assinalava a ausência ou acionava a memória, ele agora “ganha corpo” nestes fragmentos de etérea incomensurabilidade, encapsulados em ambientação bucólica.

Ao fim, tem-se a sensação de que o conjunto apresentado é uma amostra significativa dos fatores que conformam a perspectiva do olhar de Nitzan. Susan Sontag já observava que “o resultado mais extraordinário da atividade fotográfica é nos dar a sensação de que podemos reter o mundo inteiro em nossa cabeça (1)”; assertiva que parece descrever bem a compulsividade apaixonada com que esta artista se dedica a seu métier. Resta o exercício de manter a disciplina necessária para eleger o que se apresenta aos olhos tarefa árdua, como tudo que envolve escolha e paixão.

Guy Amado

(1) In Sobre fotografia; tradução Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.