Caos Calmo

… Foi Num Dia, no Jardim, exposição de Ana Nitzan que ocorre na dConcept, na vila outrora tão povoada pelas construções do visionário e experimental Flavio de Carvalho (1899-1973), se pauta por uma grande liberdade visual e de ideias. No entanto, pode surpreender quem observe na obra da artista apenas a veiculação de uma enfática gramática do feminino.

Nos quatro meses que antecederam a mostra, nos quais estive em estreita colaboração com Nitzan, o que mais me saltou os olhos na numerosa e inquieta produção foi o olhar fotográfico. E tal viés fotográfico não se manifesta apenas no suporte da fotografia como é mais conhecido, tanto em versão digital como analógica, mas em um trajeto que privilegia o foco sobre lugares familiares _ dos mais domésticos aos mais, a priori, inusuais _ vistos em vários tempos, por exemplo. Algo relacionado intimamente à memória e muito intrincado às afetividades.

“Acho que busco o caos. Acho que preciso de uma abundância de informações para encontrar a minha via”1, afirma Tacita Dean, fundamental nome da contemporaneidade, em entrevista a Hans Ulrich Obrist. Gavetas, contatos, negativos, polaroides, álbuns, pastas de computador, caixas, desenhos, papéis, móveis de fabricação própria, crochês, galhos e ossos, entre diversas coisas armazenadas no ateliê encravado no Jardim Paulistano, fornecem pistas para o universo poético de Nitzan, mas o tom mash up pode afastar os mais afoitos da essência da obra dela.

Corredeira 2, fotografia que serve de farol para … Foi Num Dia , revela muito dos procedimentos da artista. Em meio a um verdejante e sedutor bosque da Nova Zelândia, uma família se regozija tranquilamente em um curso d’água. As árvores parecem quase arrebatar, algo entre a ameaça e o abrigo, o pequeno núcleo familiar. A dubiedade de sensações invade o nosso olhar, fazendo com que sejamos obrigados a ficar mais atentos com o nosso entorno. “Ao reter o fluxo vertiginoso do tempo e ao olhar o mundo ao redor com olhos que apreciam e ritualizam o tempo vivido, a artista flagra imagens nas quais reverberam pulsões de vida e morte”2, assinala o crítico de fotografia Eder Chiodetto sobre a instigante obra de Rinko Kawauchi, influência forte na poética de Nitzan.

Vida e morte, céu e terra, florescimento e aridez, fluidez e interrupção, natureza e construção. A obra de Nitzan passeia e oscila com habilidade por esses binômios, mais para expor o entre e o processo de criação do que para apresentar taxativamente situações. A inevitabilidade da transformação é outro de seus eixos poéticos. Na mesa que dá ao diminuto espaço expositivo da galeria um caráter projetual e de ateliê _ que, por extensão, dá o tom em toda a mostra _, encontramos cinco momentos, de 1985 a 2008, de uma edificação modesta na propriedade da artista, em Avaré. A fotógrafa ainda afeita ao preto e branco documental surge em Memória 1 e 2, mas busca menos o verismo, ao destacar a luz misteriosa ao centro dos registros. Tal luz ainda reverbera em Constelação, que faz par com Canto, quando Nitzan corrompe a geometria regular da precária casa e, com materiais triviais, realiza peças que ressignificam os ambientes, já à época numa sustentação duvidosa. Os trabalhos Vazio 1 e 2 atestam o que era indicial anteriormente: tais residências foram postas abaixo, apenas restolhos sobraram. Mas eis que em Reconstrução ela empreende uma operação poética de resistência, ao criar com seu gesto o desenho de uma casa ideal, que restitui a antiga moradia, em finos traços. A arte restabelece a vida, mesmo que por breves momentos.

Nas obras de Nitzan, nada é estável, cômodo. A série Páginas ao Vento indica que o planar nas paisagens fotográficas não responde completamente aos anseios dela. Suas superfícies precisam espelhar os pares, mas com flexibilidade _ então, ela costura imagens que, unidas, ampliam as composições do foco de sua câmera. E em outras séries, essa agitação persiste. Cogumelos vivem às custas de troncos, galhos se contorcem em busca do pouco determinável para subsistirem, folhas secas lembram asas de insetos já perecidos. Passagens na mata esquadrinham, à sua frente, grafites simples com riscos a saírem de seus centros. Frottages que frisam o ornamental contêm em seus interiores múltiplos ossos humanos, de variadas formas, originários de reproduções de livros de anatomia. São como decalques de uma assemblage sem espalhafato e apenas possíveis pela proposição da artista.

Em … Foi Num Dia, no Jardim, Nitzan abre portas empoeiradas que seguem para universos distintos. O adentrar nessas passagens, de entradas não tão escancaradas, desestabiliza o passante, menos por suas paisagens, corredeiras, cores, fluxos, seres e coisas, e mais por sugerir ao observador/ator a descoberta do indefinido, mas tão próximo. Ao discorrer sobre Kawauchi, a pesquisadora Charlotte Cotton enfatiza que sua obra tem uma prática “a não complicar em demasia as estratégias fotográficas, permanecendo fiel à noção de que tudo à nossa volta são imagens esperando para acontecer”.3 Em tempos líquidos, Ana Nitzan espera, capta e exibe, fiel aos seus ritmos.

Mario Gioia

Graduado pela ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), foi o curador, em 2011, de Presenças (Zipper Galeria), inaugurando o projeto Zip Up, destinado a novos artistas. Em 2010, fez Incompletudes (galeria Virgilio), Mediações (galeria Motor) e Espacialidades (galeria Central), além de ter realizado acompanhamento crítico de Ateliê Fidalga no Paço das Artes. Em 2009, fez as curadorias de Obra Menor (Ateliê 397) e Lugar Sim e Não (galeria Eduardo Fernandes). Foi repórter e redator de artes e arquitetura no caderno Ilustrada, no jornal Folha de S.Paulo, de 2005 a 2009, e atualmente colabora para diversos veículos, como as revistas Bravo e Trópico e o portal UOL, além da revista hispano-portuguesa Dardo. É coautor de Roberto Mícoli (Bei Editora) e faz parte do grupo de críticos do Paço das Artes.

 

  1. OBRIST, Hans Ulrich. Entrevistas – Vol. 3. Cobogó/Instituto Cultural Inhotim, Rio de Janeiro, 2010, p.152
  2. TAKEI, Masakazu (org.). Semear – Rinko Kawauchi. Foil/Museu de Arte Moderna de São Paulo, Tóquio e São Paulo, 2007
  3. COTTON, Charlotte. A Fotografia como Arte Contemporânea. Martins Fontes, São Paulo, 2010, p. 238