Por Eder Chiodetto
Imagens convidam os olhos a não se apressar, mas sim a descansar por um instante e a se abstrair com elas no enlevo de sua revelação.
A Imagem mítica, Joseph Campbell
Parada diante de uma grande árvore cuja copa florida se impunha majestosamente na paisagem, a artista Ana Nitzan foi levada a um momento de reflexão sobre o seu lugar no mundo, as limitações do ser humano na relação com a natureza e, consequentemente, a impotência escancarada da fotografia na tentativa de representar com fidelidade essa visão.
Este instante fundador de um pensamento pode ser entendido como o momento catarse no processo criativo de um artista, aquele a partir do qual será gerada uma obra. É quando o mundo exterior sensibiliza e faz mover a engrenagem do devir artístico, a ponto de o artista se sentir convocado a caminhar pelos seus labirintos, entre incertezas, intuições, experimentações e acasos, até encontrar a forma mais genuína de representar certo estado das coisas.
“Ao observar aquela árvore, me senti pequena diante da grandiosidade descomunal da natureza. Para registrá-la, me deitei no chão como quem faz uma reverência. Assim, fotografei de dois ângulos diferentes, deixando a linha do horizonte como um filete, para lembrar nossa pequenez diante de tudo isso”, diz a artista.
De volta ao seu ateliê, ao analisar as imagens que havia captado, observou as duas faces lado a lado. Surpresa. Ao se unirem as faces, as árvores surgiam sem tronco, sem contato com o solo. Era como se voassem.
Ao fotografar os dois lados da mesma copa, na tentativa de forcar os limites da fotografia para que aludisse à tridimensionalidade do referente, a artista casualmente criou a ilusão de uma levitação. Seria essa imagem que confrontava agora a metáfora, a tradução poética do alumbramento que tinha sentido ao se deparar com a árvore no campo? Parecia que sim. Mas faltava um elemento que devolveria o volume, o contorno, a espessura da árvore. A linha.
“Em vários objetos que desenvolvo, utilizo a linha. Seja a linha do desenho, seja a de costura. Em ambos os casos ela conecta ideias, conceitos. Une os universos do desenho e da construção fotográfica. A linha do desenho é a mesma que costura as paisagens perdidas no tempo. A linha embaraça, une, conserta o rasgo, cura a ferida aberta do tempo que se perdeu. A linha costura a trama da infância desfiada pelo trauma da vida”, diz a artista.
Costurando as duas faces da árvore pelo avesso do papel fotográfico e abrindo-o, como quem abre um livro – metáfora da fonte de conhecimento -, Ana Nitzan conseguiu unir as pontas, estéticas e conceituais, que entrelacam as indagações poéticas e filosóficas que a despertaram naquele primeiro momento diante da árvore no campo.
Essa imagem-sublevação sintetiza organicamente os ciclos vitais, a transcendência, a espiritualidade. Ao mesmo tempo, especula poeticamente sobre os limites da representação, da nossa percepção visual, do nosso olhar para o entorno.
Resta esmiucar a árvore como potência simbólica nesse circuito de rebatimentos entre o devir sensorial e o enlevo estético que as imagens de Sublimação anunciam. O Dicionário dos símbolos (1), refereência adotada pela artista em suas pesquisas, sintetiza os significados da árvore para ela:
Cosmo vivo em perpétua regeneração […] Símbolo da vida em constante evolução e em ascensão para o céu, a árvore evoca todo o simbolismo da verticalidade: veja-se, como exemplo, a árvore de Leonardo da Vinci. Por outro lado, serve também para simbolizar o aspecto cíclico da evolução cósmica: morte e regeneração. Sobretudo as frondosas evocam um ciclo, pois se despojam e tornam a recobrir-se de folhas todos os anos.
A árvore põe igualmente em comunicação os três níveis do cosmo: o subterrâneo, através de suas raízes sempre a explorar as profundezas onde se enterram; a superfície da terra, através de seu tronco e de seus galhos inferiores; as alturas, por meio de seus galhos superiores e de seu cimo, atraídos pela luz do céu. Répteis arrastam-se por entre suas raízes, pássaros através de sua ramagem: ela estabelece assim, uma relação entre o mundo ctoniano e o mundo uraniano.
(1) Dicionário de símbolos, Jean Chevalier e Alain Gheerbrant editora Jose Olympio (2012)
Ateliê-ninho-labirinto
Ana Nitzan é uma artista colecionadora de mundos, organizadora de arquivos. Em seu ateliê, em São Paulo, onde mantém a frequência e a disciplina de uma funcionária regrada, ela fica rodeada pelas matérias e materiais que lhe servem de propulsão. É seu ninho e seu labirinto, onde perder-se a achar-se não são necessariamente ideias antagônicas.
A obra de Ana Nitzan se desenvolve em espirais em que a experiência com a natureza, a relação com a família, suas leituras e viagens, a fotografia, os objetos, desenhos e costuras se articulam por uma visão de mundo curiosa e investigativa atravessada por indagações metafísicas. Os enigmas que rondam o ser humano nas suas mais profundas e inquietantes questões sobre a existência, sua vulnerabilidade, a consciência da finitude, o desejo de transcendência, a percepção destes estados nos ciclos da natureza lhe interessam.
“Eu procuro as respostas… Gosto de dar algum sentido ao aparentemente inexplicável. A arte é um bom lugar para especular sobre isso”, diz. Para mostrar de forma mais generosa as pesquisas de Ana Nitzan em seu ateliê e como é amplo e coerente o horizonte de possibilidades que ela convoca, criamos cadernos com desenhos, objetos, colagens e uma infinidade de apontamentos.
Buscamos com isso possibilitar a rica experiência de caminhar por entre as fissuras das imagens e do imaginário da artista, unir os pontos de seu processo criativo e adentrar neste território da delicadeza, que também abarca embates ferozes na busca de uma expressão legítima. No universo dessas árvores que ascendem e simbolizam a leveza há polaridades que nos afrontam o tempo todo. Como disse Gaston Bachelard, “Nao há bem evasivo, desabrochado, nao haá flor sem um trabalho da imundície da terra. O bem brota do mal”. Ou, como filosofava entre panelas a avó de Ana Nitzan: “Minha filha, as árvores nao crescem até o céu”.
Agradecimentos
Cecilia Isnard, Eder Chiodetto, Juliana Zola, Pietro Ghiurghi, Milena Galli, Letícia Coelho, Aleide Alves e equipe.
A todos os meus familiares e amigos, especialmente ao meu companheiro Jorge.
À minha mãe e à memória dos meus avós e do meu pai, que me deixaram essa terra maravilhosa para cuidar.
Agradeço especialmente ao BES, por ter viabilizado este projeto.
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